segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

MENINO BOLA



Hoje, véspera do Natal, dia em que as crianças se tornam iguais em sonhos, como se tivessem um único pai, que as visitam e presenteiam, sejam elas moradoras de palácios, barracos, viadutos ou calçadas, quero falar de bola. Tá, tatu-bola também, afinal, ainda somos um país movido a futebol.




O símbolo da Copa 2014 é um simpático tatu que se embola e vira uma bola. Sempre me pareceu um menino-bola, com uma carinha sapeca e feliz, como ficam as carinhas de qualquer criança diante de uma bola, o brinquedo mais simples e barato que se possa comprar. Quem não pode nem comprar uma bola (situação de milhões de crianças no nosso país), improvisa com uma meia, com papéis ou sacolas plásticas de supermercados, mas sai correndo atrás daquele brinquedo mágico, que move pernas e emoções pueris.

Fiquei imensamente comovida com a história de vida de tantos meninos que são explorados em times de futebol, alojados desumanamente, afastados da família, as quais, por serem pobres, não podem visitá-los nas longínquas cidades dos grandes clubes. E assim, alcançam a “maioridade” sem estudo, sem convivência familiar, submetidos a pedófilos e, de repente, aos 19 anos de idade, o sonho de ser um craque da bola se torna o pesadelo de se descobrir um fracassado aos 19 anos de idade. Um drama terrível, para quem sonhou ser um Neymar, e retorna à sua cidade, despreparado para qualquer emprego. 
Mas, esse drama atinge uma pequena parcela da população. A maioria das crianças pobres que não desfruta de espaços lúdicos, que não tem acesso a jogos eletrônicos, que só trabalha, que sua escola nada lhe ensina a não ser que pode cochilar sobre a mesa, ao som da “aula de ninar” da professora, sonha com uma bola de verdade, só sua. 

E eu tive acesso a um sonho desses, quando abri uma singela cartinha dessas que são entregues nos Correios, supondo as crianças que serão entregues a Papai Noel. 
E aí está outra grande perversidade de ser criança pobre. Quando a criança bem criada descobre que Papai Noel não existe, fica decepcionada, mas nem tanto, porque sabe que ele é bem íntimo seu e que pode pedir-lhe agora pessoalmente seu presente de Natal, mas a criança que escreve aos Correios, vai simplesmente saber que ele não existe e pronto.

Pois bem, minha missão de “Papai Noel” deste ano, foi bem difícil, porque tive que decifrar o que o menininho de sete anos de idade escreveu. Impossível. Ele é analfabeto. Está na escola, e é analfabeto. Alguém do correio, felizmente, escreveu em clara caligrafia o seu pedido: - Quero ganhar uma bola.

Jesus! Será que essa criança trabalha? Quase certo que sim, já que aos cinco anos, nossa população pobre já conhece a responsabilidade do trabalho. Será que sua professora já leu um caderno dele? Essa criança não consegue elaborar um sonho maior do que uma bola? Sua criatividade ou sua autoestima não lhe permite mais que isso? Será que é tão despossuído que a bola é um requinte? Será que sabe que os trocados que ganha no trabalho não bancariam algo além do preço de uma bola? 

Lembrei de uma longínqua semana de Natal, quando resgatávamos escravos de uma próspera fazenda no Pará e havia entre os resgatados, um menino de 14 anos, analfabeto, tão alheado do mundo que desconhecia seu sobrenome, sua data de nascimento, o nome da mãe e nunca brincou. Ganhou, no momento em que recebia suas verbas, uma bola, envolta num laço de fita, do jornalista Leonardo Sakamoto. Um presente de Natal, para um menino que nem sabia o que era Natal, até aquele momento. Um presente que dizia exatamente: 

- Você é uma criança, um menino, vá brincar. 

Neste Natal de hoje, o que tenho vontade mesmo de fazer, é dar de presente a cada criança pobre, uma professora particular, que vá alfabetizá-las em suas casas, porque as escolas não estão cumprindo o papel de alfabetizar nossas crianças. Estou cansada de entrevistar crianças alheadas, que desconhecem o alfabeto brasileiro, que não sabem nada a não ser contar notas de dois e cinco Reais. E para minha indignação, declaram estar na 5ª, 7ª série.

O discurso dos pais e dos que usam os serviços das crianças: - Elas estão na escola, qual o problema de trabalhar? 

Pois lhes digo: o problema é que o trabalho não está deixando que elas APRENDAM!!!!

Mas, já que estamos em tempos de Herodes, quando crianças são assassinadas em plena escola, em país do primeiro mundo, já estou com medo que os sabotadores da cidadania comecem a dizer que é melhor estar trabalhando que na escola, porque não é segura e nem ensina nada. 

Vai ser assim por muito tempo. Tudo vai ser usado para manter as crianças aprisionadas ao trabalho. Uma espécie de pena prévia, uma caução por ser pobre. Fico pensando se todas as minhas lutas estão sendo eficazes. Mas, de uma coisa eu tenho certeza: a grande luta da humanidade deve ser contra as mentalidades herodianas, essas que matam de várias formas a infância, em todos os países do mundo.




 


 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

O peso de ser criança pobre

Repasso, indignada, este tocante texto-denúncia. 




Quando a seca vira tema de todas as conversas, de todos os discursos, eis que o jornalista-amigo Paulo Araújo, chocado com uma foto que registra a obrigação de crianças para garantir água em casa…envia texto que o Blog publica.
Com a foto, claro.
POR QUE SOMOS TÃO POBRES?

Paulo Araújo 

Observe bem esta fotografia, nos seus mais pequenos detalhes. Ela foi feita há duas semanas na comunidade rural de Negros dos Riachos, no município de Currais Novos, região do Seridó potiguar. O local, como o nome sugere, é formado por remanescentes de um quilombo, da mesma forma que muitos outros espalhados pelo Brasil.
Na imagem, a professora Marcia Carla se prepara – com toda a emoção que o momento provoca – para se despedir definitivamente das seis crianças, depois do convívio de alguns anos na escola local. O sorriso da professora substitui um choro evidente, quase audível, encoberto pelas lentes dos óculos.
Estes seis pequenos brasileirinhos, excluídos do que possa haver de mais básico ao ser humano – como roupas, por exemplo –, estão cumprindo uma rotina diária bem diferente daquela a que teriam direito se a riqueza da 6a maior economia do planeta fosse distribuída de forma justa por meio de políticas públicas que realmente fizessem o Brasil ir para frente.
Depois de parar e posar para a foto, eles vão caminhar alguns quilômetros e transportar na cabeça, em galões de zinco, alguns litros de água para tomar um banho. Quem conhece, sabe como pesa um galão de água deste tamanho na cabeça. A cisterna, reservatório de água que aparece atrás do grupo, está vazia por causa da seca que castiga o Nordeste brasileiro de forma tão inclemente como não se tinha registro nos últimos 85 anos. Comprar água de um carro-pipa para abastecê-lo é impossível.
No alcance da lente do fotógrafo, só o cinza da paisagem, interrompida aqui e ali pelo verde tímido da algaroba. O chão está seco, esturricado. A poeira transportada pelo vento cola na pele, nos cabelos, nas roupas e deixa os personagens com uma maquiagem natural de terra. A única luz da fotografia vem do sol de fim de tarde no sertão, lambendo-lhes o lado esquerdo do rosto.
Nos braços da professora Márcia, o menor do grupo. Quantos anos terá? O que lhe reserva o futuro? Os outros cinco, que formam uma espécie de escadinha demográfica da casa, sorriem para nós, pois neles a inocência e a falta de consciência das coisas, natural para a idade, ainda não lhes despertou para a realidade a que estão submetidos. São felizes, ponto final.
Quase todo o Brasil cabe nesta foto. Ela nos cobre de vergonha da cabeça aos pés e surge diante de nós para refutar, sem direito a argumento contrário, qualquer idéia de país rico, líder de um bloco econômico chamado Bric, e que vai sediar uma Copa do Mundo em 2014 e uma Olimpíada em 2016. Que triste e desigual país é este? Por que ainda somos tão pobres e temos tantos problemas em encarar esse fato? Conviveremos até quando com esta imagem?
Este é o pedaço do Brasil onde nunca chegará a água da Transposição do Rio São Francisco, a jóia da coroa do PAC I, por onde já escorreram mais de 8 bilhões de reais. O que há no projeto criado por Lula – ele próprio a encarnação do brasileiro que fugiu de uma fotografia como esta e tornou-se o presidente mais popular do Brasil – são canais vazios formados por placas rachadas no solo seco entre a Bahia e Pernambuco.
Este é o pedaço do Brasil onde, a cada dois anos, a rodovia muito próxima desta casa onde moram estas seis crianças são rasgadas por LandRovers transportando pessoas que chegam, desembarcam, dão abraços, beijos, posam para fotografias, fazem promessas de melhoras e somem no rastro da poeira – para voltar, de novo, dois anos depois. Fora a isso, eles só são assistidos por pessoas como a professora Márcia. Por isso o choro travestido de sorriso na hora da despedida.
Daqui a cem anos, quando não estivermos mais aqui, é bem provável que esta cena possa ser repetida para outro fotógrafo de forma absolutamente igual em pose, gestos, contexto e geografia. Também por outras professoras Márcias que vão lá, tentam mudar uma realidade tão difícil por meio do conhecimento. E também por outras crianças, e outras cisternas vazias, e outros galões, e outras terras ressequidas, e outras nudezes.